
Frio... Essa é a descrição perfeita para o que eu sentia naquele momento, naquele domingo chuvoso, gélido e estranho, talvez o mais estranho de toda a minha vida. Também sentia medo. Muito medo. As ruas desertas e escuras daquela pequena e pacata cidade que outrora tanto quis conhecer, naquele momento me causavam pânico, angústia, sofrimento. Era um misto de indignação, ódio, tristeza e dor. A dor que assolava meu coração era tão intensa e profunda que eu estava a ponto de rasgar meu peito e arrancá-lo dali, a fim de que toda aquela angústia desaparecesse. As lembranças dos últimos dois anos e de todos os momentos felizes que neles vivi, me causavam náuseas e me faziam caminhar cada vez mais rápido por entre as ruas. A impressão que eu tinha é que quanto mais eu pensava e todas aquelas imagens desconexas surgiam na minha mente, mais a chuva caía. E com mais força. E então eu agilizava os passos e maior ficava a escuridão ao meu redor. Um enorme e lindo filme passava pela minha confusa cabeça: o dia em que nos conhecemos, na biblioteca da faculdade; as tantas segundas-feiras em que almoçávamos juntos; os cafés da tarde que tomávamos, enquanto debatíamos a respeito do livro em que estávamos lendo no momento; as festas; os restaurantes; as milhares de sessões de cinema madrugada à fora; os teatros; as pizzas de sexta-feira à noite, na minha casa ou na dele; os beijos; o sexo, tímido no início mas fabuloso e apaixonado no final; o pedido de casamento, ajoelhado no meio de uma rua deserta e escura, em um dia chuvoso após uma grande briga… Talvez por isso, inconscientemente, esse tenha sido o meu local de refúgio no momento de dor: as ruas desertas e escuras de um dia chuvoso, em uma desesperada tentativa de relembrar o passado tão feliz, e buscar respostas a todos os últimos estranhos e inesperados acontecimentos.
Enquanto caminhava rápido, tentava em vão puxar o ar
para meus fracos pulmões, e quanto mais o fazia, mais náuseas sentia e mais as
minhas forças se esvaiam. De repente senti minhas pernas fraquejarem, minha
vista escureceu e então eu caí. Abaixo de mim havia um solo duro, frio e
molhado, e rapidamente meu corpo ficou encharcado. Enquanto desfalecia, ouvia o
forte barulho da chuva que tocava o chão e, ao longe, escutava a imaginária
música instrumental que era tema da festa de dois dias atrás. Ouvia a música
cada vez mais distante e então o breu tomou conta de mim. Nada mais eu vi, nem
ouvi e nem senti. Naquele momento fiquei reduzida à matéria, a um corpo molhado
estendido no chão, sem alma, sem emoção. Só.
Sem ter noção do tempo que passou, lentamente minha
respiração voltou e novamente sentia os músculos e ossos do meu corpo, agora
rígido e dormente. Ouvi um som alto e familiar. Senti um incômodo nos olhos
ainda fechados e essa sensação aumentava à medida em que o tal som se
aproximava. Uma forte luz piscava na direção dos meus olhos e então percebi que
um carro se aproximava. Apesar dos meus olhos não me obedecerem e continuarem
fechados, notei que o carro parou. Uma porta se abriu, bateu com força
suficiente para me fazer encolher e senti que alguém se aproximava. Senti medo.
E tive curiosidade de saber o que estava acontecendo, mas não conseguia abrir
os olhos, estavam pesados e todo o meu corpo doía. Percebi alguém do meu lado.
Suas fortes mãos tocavam meu pulso e meu peito, talvez em uma tentativa de
buscar minha frágil respiração e encontrar vida em mim. Não posso afirmar que
ainda tenho uma vida depois de tudo o que passei no dia de hoje… Ouvi uma voz e
senti umas leves sacudidas, mas não consegui identificar a voz e compreendê-la.
De repente senti um forte solavanco e um frio intenso percorreu minha espinha.
Tentava, com as forças que me restaram, abrir os olhos, mas foi mais uma
tentativa frustrada. Procurei, então, relaxar, e confiar naquela pessoa
estranha que me colocava no colo e me levava para algum lugar que eu
desconhecia. O barulho da chuva continuava em meio ao silêncio sepulcral. Senti
passos largos e ágeis, e logo eu estava em um lugar fechado, quente e silencioso,
exceto por um som muito baixo mas reconhecível, de uma música clássica. As
fortes mãos acariciavam as minhas, molhadas e geladas, e logo senti um pano por
sobre meu corpo frio. Eu tremia de frio e de adrenalina. Notei que o aquecedor
estava ligado, para a minha sorte, e aos poucos o gelo foi desaparecendo e meus
músculos se soltando. Lentamente meus olhos foram se abrindo, ainda com um
certo sacrifício, mas agora com um incentivo maior: descobrir quem era essa
criatura que me tirava do frio e me livrava do perigo. Comecei a enxergar uma
imagem borrada, como uma sombra, e logo notei que se tratava de um homem. Ele
era grande, bem maior do que eu, e apesar da escuridão, me olhava atentamente e
intensamente. Quando finalmente meus olhos se abriram, arregalei-os, em um
misto de susto, vergonha e medo daquele ser desconhecido e amigável, que
naquele fatídico dia, me estendia a mão. Ele levou o dedo indicador à boca e
fez um singelo sinal me pedindo para relaxar, em um claro sinal de que não me
faria mal. Olhei profundamente dentro dos seus olhos e notei preocupação,
compaixão e curiosidade. Ele não era bonito, tinha traços grosseiros, mas era
muito, muito charmoso. Por um breve momento, senti uma excitação, que foi
embora no exato instante em que me lembrei do triste motivo que me levou até
ali, naquela desconfortável situação. Não falamos nada. Ele nada perguntou. E
eu nada respondi. Apenas acariciava as minhas mãos enquanto voltavam à
temperatura normal. Aquele toque forte e macio me provocou calafrios e ficamos
por alguns longos segundos nos olhando profundamente. Tentei balbuciar algumas
poucas palavras, em vão, e antes mesmo que eu pudesse me arrepender, falei em
um tom baixo e lento:
"-Eu… fui… abandonada pelo meu… marido… na
lua-de-mel…"
Cada palavra que eu dizia feria forte o meu peito,
provocando pontadas agudas e aumentando a angústia esquecida na hora do
desmaio.
Ele me olhou com ternura e pena, apertou com força
minhas mãos, e nesse momento senti uma lágrima escorrer no meu rosto. Então
angustiado ele perguntou:
"-Sinto muito! O que eu posso fazer por você,
para aliviar essa dor?" Ele me olhava como quem olhava para uma criança
abandonada.
"-Apenas me abrace… por favor!"
Ele me olhou com surpresa, e ao mesmo tempo, com
excitação, e antes que eu pudesse pensar no que havia dito, aquele homem
grande, forte e desconhecido, me tomou nos seus braços e me apertou com força.
Desabei em uma sequência cadenciada de choro e soluços que ensopavam sua camisa
e o faziam me abraçar ainda mais forte. A excitação aumentava cada vez mais e
então ele me beijou, desesperadamente. Eu já não pensava em mais nada, apenas
nele e no seu beijo forte e delicioso. Ele me acariciava por sobre o tecido
molhado das minhas roupas e tudo o que eu queria naquele momento, era ele. Ele
tirou minhas roupas com urgência, no compasso da grave voz do tenor da música
que tocava, embalando o nosso sexo, desconhecido, mas espetacular. Em uma
explosão de sentimentos, sentidos e sensações, caí em seu colo, o abracei mais
forte que pude, e adormeci, profundamente.
A luz do dia incomodava meus olhos. Não havia sol, mas
havia muita luz. Ouvi uma voz me chamar. Senti meu corpo ainda doído, mas a
tristeza um pouco menor. Então, quando abri os olhos naquela manhã iluminada e
ainda fria, um senhor estava perto de mim, preocupado, e disse:
"-A senhorita está bem? Aconteceu alguma coisa?
Posso lhe ajudar?"
"-Eu… desmaiei… ontem à noite. Mas é estranho…
chovia muito e um homem passou de carro, parou e me ajudou, mas… adormeci e não
me lembro de mais nada. Por que ele me colocaria aqui na rua, no chão
novamente?" Pronunciei tais palavras com um aperto no peito, ao pensar que
aquele homem grande, tão gentil, que me ajudou no momento em que precisei, e
que me beijou e fez sexo comigo como ninguém havia feito antes, havia me
abandonado, assim como… meu marido…
"-Minha senhora, deve haver algum engano, a
senhorita deve ter batido com a cabeça ou algo desse tipo, por que não há
possibilidade de ninguém ter passado por aqui de carro. Essa rua está fechada
há dois meses por causa de uma obra, e é impossível entrar, pois as barreiras
são de cimento. É… a senhora quer ir ao médico, ou quer que eu ligue para
alguém?"
Olhei atentamente para meu braço direito, enquanto o
senhor esperava uma resposta.
"-Não, senhor, muito obrigada! Já estou me
sentindo melhor e vou caminhando até o hotel onde estou hospedada. Muito
obrigada!"
O senhor, então, foi se afastando de mim, me olhando
confuso, e eu, fiquei ali, deitada, parada, observando a pulseira que agora
estava no meu pulso direito, mas que até ontem à noite não estava.
Imediatamente me lembrei de tudo o que aconteceu entre eu e aquele homem grande
e forte, e instantaneamente senti uma pontada na minha virilha. Foi quando me
dei conta de que estava sem calcinha…
Não sei o que aconteceu realmente. Se foi um sonho, ou
se foi real. O fato é que a pulseira estava ali, no meu braço direito, e que a
calcinha não estava mais ali, nas minhas partes íntimas.
Depois de tudo o que passei naquele dia triste,
doloroso, frio e chuvoso, a grande lição que aprendi foi: aconteça o que
acontecer, sempre vai haver alguém querendo você e fazendo você de tudo
esquecer, nem que seja por um alvorecer...
Bianca Roriz