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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Preamar

Todos estranhavam aquele senhor, pele enrugada, olhar sério, pele morena de sol, mas quando era visto sem camisas, podia-se ver a marca não de uma, mais de várias camisetas que se sucediam dia após dia na vida dura que levava de sol a sol. 
Certa vez, não contive minha curiosidade, pois aquele senhor só vinha no bar, quando vinha ao Banco, aqui em frente, para receber seu pagamento. Então ao vê-lo chegar, apressei-me em terminar de lavar as louças, trabalho sem fim neste "pé-sujo". O atendi, sujeito estranho, primeiro me pediu um copo com água e o bebeu em um gole só, em seguida me pediu um fogo Paulista, bebida que sempre achei muito doce, mas se ele a quis, quem sou eu para questionar? Gosto é gosto. Entre um copo e outro que me apressa a em lavar, busquei uma forma de puxar assunto, aquele senhor de aparência cansada, me parecia solitário e sisudo. Foi quando eu lhe disse: - Eta serviço marcante que não acaba.
Com um olhar sério, ele me disse: - você acha?
- Nossa, só acho! Sirvo a bebida, pego o copo, lavo o copo, sirvo a bebida, pego o copo, lavo o copo... Minha mão fica enrugada o dia todo.
- Eh, a minha também.
- Tua pele parece tão seca. Qual o seu nome, amigo?
- É sim... me chamo Norberto.
- O que conta são as amizades que faço aqui, Norberto... me chamo Élcio.
- Isso é bom, meu trabalho é um dos mais solitários e menos lembrado.
- Ah, mas aqui a rotina é cansativa.
- É? Deveria ver o meu... 
Mais de perto, pude perceber as marcas do tempo, do sol, a pele rachada e lhe perguntei: - muito tempo no seu trabalho?
- Minha vida toda... engraçado você falar de rotina. O meu trabalho se dá apenas pela rotina e com o mínimo de contato com outras pessoas, até porquê, não tenho colegas onde trabalho.
- Eu tenho 42 anos e estou nesse balcão há mais de 20 anos, e o senhor, quanto tempo de profissão?
- 24... 24 anos, há 24 anos eu abro a comporta, deixo a água do mar entrar, alagar o terreno, no chão gradeado, vejo se formar um lindo espelho de água, é uma das coisas que mais gosto... com o terreno alagado, espero a água sumir, dias de sol, ela sempre vai e deixa na terra uma nata branca, com uma pá raspo o solo, retiro o sal, empilho num canto. Depois, abro a comporta, deixo o solo alagar, olho o espelho, espero secar, raspo o solo, tiro o sal, empilho no canto. Abro a comporta, alago o solo, espero secar, raspo o chão, tiro o sal, empilho num canto.
- Nossa, você faz sal?
- Não, só tiro da água do mar.
- sim, entendi, mas... que diferente.
- É, todo mundo me diz isso, acho que pensam que o sal já surge ensacado.
- Não, Eu sei que não.
- Pois bem, alguém tinha que fazer... e é o que faço... me dê mais um copo d'água?
- Claro... tome... e eu achando meu trabalho maçante... Putz, o teu me parece muito mais.
- A vida é assim, todo mundo reclama de tudo que tem, tudo é sempre pouco, as pessoas não têm tempo para felicidade, não enxergam a sorte que têm... tenho pouco, com o pouco que tenho, tento ser feliz, tento ter meus sonhos.
Olhando aquelas marcas de expressão, aquela pele intrigante, que nem todo creme do mundo conseguiria hidratar, perguntei: - Há tanto tempo o senhor está nessa vida, mesmo preso a uma vida tão dura, tanta sabedoria o senhor carrega... Quantos anos tem?
- É, no meu trabalho, tenho muito tempo para pensar, observar a vida ao meu redor. Onde trabalho, não tenho muito o que ver, mas vejo a vida com os olhos da alma, se isso é sabedoria, eu não sei, mas não é porque minha pele é enrugada que sou um velho.
- Quantos anos o Senhor tem?
- 38 anos, não sou sábio, só não sou cego.

Alex Huche